quinta-feira, 3 de abril de 2008

Um patriota

Por Wander Antunes
Ilustração de Weberson Santiago

Não dorme direito há dias. E se dorme, quase dorme, tem sono agitado e cheio de pesadelos, como esse de agora há pouco, repleto de rostos do passado, gente conhecida, gente morta, que lhe roubam o sono e a paz.
- Sou um patriota! Tudo o que eu fiz foi pelo Brasil... Tudo!! Então estou no meu direito, não estou?
Conclui que sim, se convence. Na verdade tenta se convencer, que sua vida tem sido isso mesmo, uma infindável e cotidiana tentativa de auto-convencimento. Levanta-se, a maldita vontade de urinar não lhe dá sossego. No banheiro, esperando pela rala e dolorosa urina, sem querer, pensa na idéia de patriotismo que evocara ainda há pouco em sua defesa e imediatamente vem-lhe à mente o famoso aforismo: O patriotismo é o último refúgio do canalha.
- Mas quem foi o cagão que disse essa merda?
Traiu sim, mandou velhos aliados para a morte. Entre eles a amante, grávida de um filho seu. Evidente, não é por isso que requereu para si a indenização dada pelo governo aos perseguidos pela ditadura militar – ferrou com essa gente por acreditar que eram inimigos do Brasil, por puro patriotismo. A indenização ele quer pelo que aconteceu antes, bem antes.- Então não tive que deixar a marinha? Podia ter feito carreira, chegado longe... Tido uma vida bem diferente. Tenho que ser indenizado sim, porra. Então até aquele escritor de merda, que nunca se fodeu nem nada, não tá levando a bolada dele todo mês? E olha que o puto nem se incomodou de furar a fila...
Urinou. Um quase nada, já sabendo que daqui a pouco vai bater vontade outra vez. E que vai urinar quase nada de novo.
- Devo estar bebendo pouca água...
Vai para a sala, deixa-se cair no velho sofá e liga a TV. De alguma forma o noticiário o faz sentir-se melhor, bem melhor.
“O brasileiro é patrimonialista e aceita com naturalidade que políticos se apropriem dos bens públicos”.
“A crise ética que abala as instituições está à espera de um posicionamento mais ativo e construtivo de cada um de nós.”
“Corruptos são reeleitos em todo o país.”
É sempre assim, basta se expor um pouquinho ao noticiário e imediatamente suas reivindicações lhe parecem ainda mais justas. Então não fora ele mesmo um perseguido pelo golpe de 64? Então não teve que fugir? Acabou se metendo na luta armada, foi para Cuba receber treinamento militar e quando voltou ao Brasil foi preso, assim que chegou. Para sua sorte, costuma dizer aos poucos amigos. Graças ao bom Fleury se arrependeu, converteu-se à boa causa e não pecou mais. Ou sempre esteve, desde o começo, com a turma do Fleury e tudo o mais é que fora uma farsa. É, pode até ser, agora nem mesmo ele sabe ao certo, tanto tempo tentando se convencer disso e daquilo, tentando reescrever a história de sua vida.
- Mudei de idéia, caralho! Então não tenho o direito? O que aquela gente queria não era bom para o Brasil. Esse negócio de comunismo... Nossa gente não é assim! Nos somos cristãos. Cristãos!!
E o aforismo lhe vem à cabeça outra vez, porque, de alguma forma que não consegue evitar, idéias como “nossa gente” e “nós somos cristãos”, também lhe parecem muito vizinhas àquelas de patriotismo. Argumentação de canalha, de patife?
- O patriotismo é o último refúgio do canalha!... Mas quem foi o filho da puta que falou essa merda?... Ah, quer saber?, e quem não é canalha nesse pais? Não... Não que eu seja, não que me ache um canalha... Fiz tudo pela pátria. Eu sou um patriota. Um patriota, ouviu Johnson?! – e foi assim que o nome do inglês, o tal cretino que botara patriotas e canalhas no mesmo saco, o nome que ele tanto tentara lembrar sem sucesso, lhe veio a mente, sem aviso e sem esforço, no meio de uma frase.
- Johnson! Dr. Johnson!!
Isso mesmo, filósofo do século XVIII ou algo assim.
- Inglesinho de merda!... Taí, esse não devia ser um patriota, não devia mesmo. Isso que ele disse foi pra confundir, que é tática de subversivo esse negócio de falar mal da pátria, da família... Essa gente não tem princípios...
Dá um foda-se a Johnson e aos milhões de brasileiros que certamente irão acusá-lo de não ter direito moral a nenhuma indenização.
- E alguém nesse país tem direito moral a alguma coisa?
Está bem, nem mesmo a interminável vontade de urinar o incomoda agora. Sente-se em paz. E ri, já se vê indo ao banco todos os meses para receber a sua indenização de perseguido político.
- Então não tenho direito legal? Tenho sim, tenho sim, porra.
Relaxa e se deixa banhar, com imenso prazer, no mar de lama patrocinado pelo judiciário, pelo congresso, pelo senado, pelo executivo, pela brava gente brasileira, que a apresentadora gostosa do telejornal vai desfilando com visível prazer, um após o outro. E outro. E outro. E outro...

Um comentário:

Anônimo disse...

E o Zózimo? Leremos suas histórias aqui ou o blog é apenas pra contos?